Bacharéis

 I - O Doutrinador
           Ele acorda perto das dez horas e vislumbra pela janela aberta o mar azul em todo o seu esplendor. Era uma terça-feira de setembro e se via, ao longe, alguns pequenos barcos de pesca. Tomou o café da manhã, preparado pela empregada doméstica, conferiu o noticiário em seu Ipad e dirigiu-se ao “home office”. Escrevia mais um livro.
           Aos 32 anos de idade, seria a terceira obra por ele publicada sobre a justiça penal e seus embasamentos teóricos/filosóficos. Também aquele novo trabalho estava saturado com seu característico viés zaffaronista, que era uma de suas marcas registradas.
           Escrever sobre a doutrina “pura” era sua paixão. Desde a juventude ele se houve melhor como idealizador do que como empírico. Quanto mais a aplicação se distanciava da doutrina, maior era sua repulsa ao concreto.
           "Theodor Adorno me dá razão". Explicava a quem ousava inquiri-lo sobre sua fixação teórica. Por conta disso e, principalmente pela desnecessidade de autossustento, ele nunca havia se embrenhado pela selva que é a prática da justiça. Advogados, promotores e juízes em conflito, vítimas e delinquentes de carne e osso... Esse não era seu habitat. Afinal, ponderava, por que macular a grandeza do pensamento acadêmico com as trivialidades da prática judicial? Por que enfadar-se com o debate miúdo, enquanto a aventura selvagem da abstração estendia seu convite aos bravos?
            Para ele bastavam os assépticos deslindes doutrinários que desfilavam imaculados nos compêndios de capas escuras das bibliotecas, pois entendia que espelhar a erudição jurídica autêntica era uma nobre tarefa reservada para altos estratos de operadores do direito, dos quais ele se via como um representante em ascensão.
           Seu sacerdócio era no claustro, nos monastérios dos ideais, e aquele luxuoso e tranquilo santuário praiano era o melhor lugar para lapidar as singularidades da doutrina penal refinada.
          Se não, "data vênia", quem haveria de depurar o direito?


II - O Pragmático
           Era o grande dia do júri. O advogado se olhou no espelho e retocou o topete com uma grossa camada de gel, garantindo o desejado formato de onda do mar que lhe conferia uma aparência levemente caricata. Sua intenção era mesmo parecer sutilmente engraçado, pois entendia que os jurados precisavam ver nele uma figura exótica, um alívio cômico para quebrar a seriedade opressora do Tribunal do Júri. A ideia era provocar uma oportuna empatia, pois os jurados sentiam-se deslocados naquele vetusto salão e a aparência esquisita do advogado servia de espelho para que cada um visse refletida nele uma fraqueza própria.
           O julgamento era uma peça de teatro com final imprevisível, e ele precisava mostrar-se como um defensor aguerrido do seu cliente contra a fúria do monstro- Estado, ávido em condenar. O caso seria difícil: acusavam seu cliente, um fazendeiro, de ser o mandante do assassinato de um líder camponês. Havia provas materiais e testemunhas que apontavam para a culpa de seu constituinte. Mas, como era comum naquele Estado, a polícia local havia deixado muitas falhas técnicas no inquérito. Com isso, sobrava material para semear dúvidas nas convicções dos jurados.
           O advogado sabia que pessoas de bem temem condenar um inocente à prisão e que todos aqueles "juízes do povo" estavam desconfortáveis diante do poder político do réu. Uma vez que bem cultivado, o germe da dúvida faz estragos nas mais nítidas lembranças. As evidências técnicas e depoimentos trazidos pelo monstro-Estado não seriam suficientes,
“- O senhor tem certeza absoluta de que era esse o homem que viu naquela noite?”;
“- Não poderia ser outra pessoa parecida?”
“- Não é verdade que a senhora já usou óculos?
“– A perícia foi assinada pelo legista oficial ou por um plantonista?”
“- Vamos arriscar carregar para a vida inteira o remorso de condenar um homem inocente?”
“ – Vejam, trinta pessoas aqui testemunharam que o meu cliente é uma boa pessoa, pai de família e tranquilo”;
" - Sr. jurado Fulano (chamar um jurado pelo nome sempre causava efeito), a situação não está muito clara...
           Seria mais um longo dia. O advogado havia criado um personagem para si próprio, que com o tempo avançou os limites dos tribunais e se apoderou do ator, a ponto de nem mesmo ele lembrar-se de que existiu em outra configuração.
           Tudo começou quando ele, em começo de carreira, amanheceu em frente à delegacia em que estava detido um “suspeito” de ter cometido seis homicídios. A polícia demorou quase um ano para prendê-lo, num caso que teve grande repercussão na imprensa. Naquela manhã ele conseguiu ser “contratado” e sua foto abraçando o suposto assassino na saída da delegacia havia estampado os jornais. Foi um grande começo.
           A partir daquele dia, seu nome ficou vinculado a casos “polêmicos”. Ele gratificava repórteres e policiais para avisá-lo da ocorrência de crimes com “potencial repercussão”. Começou com crimes que envolviam acusados pobres, que na maioria das vezes sequer pagavam por seus serviços. Pouco a pouco, com a chegada da fama, ele tornou-se o preferido dos mais abastados.
           A fórmula “empatia + deboche do sistema policial + dúvida” quase sempre funcionava, mas sempre com o cuidado de manter uma aura de dignidade em torno dos "dedicados policiais", atribuindo os erros à "precariedade do sistema". Ele não queria rusgas com a polícia. Inclusive ele defendia alguns delegados em juízo.
          Certa vez, num júri, ele comparou todo o julgamento a um circo, inclusive encenando palhaçadas; em outra, fingiu que rezava um terço enquanto o promotor público falava, causando risadas tímidas na assistência e no corpo de jurados. Quase sempre ele concluía sua argumentação final ajoelhado de frente para o crucifixo da sala de julgamentos, ou debruçado sobre uma imensa pilha de livros de doutrina, aos prantos e pedindo “justiça” ... Ele se entendia como a personificação do direito real, e aceitava qualquer causa.
           Um de seus lemas preferidos era: "quanto pior o sistema, mais caro eu cobro".


III - O Melhor Aluno
           Seu nome era sinônimo de excelentes notas. Um bom rapaz, cheio de valores morais, fruto da educação luterana. Sua família tinha história e posses suficientes para ser considerada como "tradicional" na cidade. Os colegas de faculdade diziam que ali estava um futuro magistrado ou promotor de justiça. Mas ele não se sentia vocacionado para essas carreiras jurídicas que, em sua percepção, eram engessadas e balizadas demais.
           Ele amava a justiça e via o direito como uma luz libertadora contra as trevas da barbárie. Ao fim do segundo ano já havia se decidido em ser um heroico "advogado militante", ainda que que não fosse compensador em termos materiais. Tudo pelo ideal de melhorar o mundo.
           Com seu sobrenome influente e notas vistosas, foi fácil ser admitido como estagiário no escritório de um dos mais afamados advogados do Estado. Na lide jurídica, sob a tutela direta do mestre, ele aprendeu os ardis da profissão: os segredos da protelação processual, a arte da "engenharia jurídica", a força do sofismo bem colocado, a mágica da prescrição e, principalmente, os benefícios do acesso às antessalas dos tribunais. Ao fim do estágio, foi incorporado no efetivo de causídicos do escritório.
          Passados dez anos, o "menino prodígio" tornou-se um dos advogados mais atuantes da firma e um dos preferidos do velho mestre. Seu nome era frequente em noticiários. Ele agora defendia com brilho e galhardia clientes abastados acusados de crimes contra a vida, patrimônio e - principalmente - administração pública. O bom menino aprendeu que tudo é relativo e, principalmente, que "pecunia non olet" (*).
           Em casa, no convívio com os amigos e nas reuniões da igreja que frequentava, ele continuava sendo o "bom rapaz", exemplo de integridade, valores morais e luta pela justiça.

* 1. "dinheiro não fede".



IV - O Aprendiz
           Onze horas da noite de um sábado de inverno. Após esperar uns quarenta minutos num banco frio, o delegado finalmente o chamou. Disse que a situação estava complicada para seu cliente pois "tráfico de drogas é crime pesado doutor". Sentado em sua puída cadeira, o delegado nem olhava nos olhos dele, fingindo folhar um velho inquérito que parecia estar uns dez anos em sua mesa.
           O jovem advogado sabia muito bem o roteiro daquela conversa, não era a sua primeira vez, mas ainda tinha muito medo daquele espaço de tempo entre as falas "seu problema é grave" e "como podemos resolver isso?". Afinal, todos sabem que é muito mais fácil e barato "resolver" um problema como aquele direto na delegacia do que partir para juízes e tribunais. Mas naquela noite os sinais de que o delegado também estava em sintonia eram óbvios. Não haveria constrangimentos. Ele arriscou falar:
- "Podemos conversar, doutor?"
O delegado levantou o olhar e sorriu de canto de boca.
- Estamos aqui para isso, senhor advogado. Respondeu.
- E de quanto será que estamos falando? Disse o advogado.
           O delegado pôs a mão no queixo, olhou para o advogado, e fixou os olhos na lapela do seu terno, em que brilhava um botton da OAB. Observou que o traje do advogado era de tecido fino e tinha um excelente acabamento, o que conferia um ajuste perfeito - com certeza obra de um bom alfaiate. A indumentária era complementada com um luxuoso relógio prateado, de marca conhecida.
- Em, que faculdade o doutor se formou? Perguntou o delegado.
- Foi na PUC. Respondeu o advogado, agora um pouco mais desconfiado dos rumos da negociação.
- Ah, que bacana.
Mas o Sr. perguntou sobre o que mesmo?
- Sobre valores. Respondeu automaticamente.
- Há sim! Valores para "resolver" o caso do seu cliente...
Silêncio perturbador.
- Pois então, doutor advogado, o senhor está preso em flagrante por tentar subornar uma autoridade policial!
- Como?
- Isso mesmo. Tenho aqui três testemunhas.
- Escrivão, vamos lavrar o termo de prisão em flagrante agora mesmo!
           Já eram quase quatro horas da madrugada quando o advogado finalmente saiu da delegacia, acompanhado de seu pai.
Abatido, mas totalmente liberto de qualquer mácula em sua biografia profissional.


V - O Caso de Sucesso
           Ela sempre conseguia notas excelentes, o que a fazia ser uma das melhores de sua turma do curso de Direito. Decorava conceitos e prazos e, principalmente, sabia que para lograr êxito nas provas não era necessariamente preciso entender as coisas, mas sim escrever as respostas padrão. Ela sabia que os professores raramente corrigiam as provas: eles designavam estagiários e até secretárias para desempenhar essa modorrenta tarefa docente. Os poucos mestres que se prestavam aos trabalhos da correção o faziam com pressa e fastio. Então, para agradar corretores desta estirpe e tudo dar certo, as respostas tinham que ser as mais literais possíveis. Ela mesma conhecia um acadêmico que corrigia as provas para outro professor. De posse desse segredo, e de uma memória prodigiosa, as boas notas vinham naturalmente.
           Assim, ela passou pela faculdade com destaque. Ao término do curso, resolveu prestar qualquer concurso público cujo cargo tivesse um salário atrativo. Poucos meses de espera após a formatura, o tal concurso apareceu. Com o edital em mãos, ela se esmerou em seu talento: decorou tudo o que deveria decorar. Passou, foi classificada e nomeada. Ganhou estabilidade e até hoje não entende o que é pressuposto da ação ou caráter forfetário do salário, mas tais saberes nunca lhe fizeram falta.
           Ela é um "case" de sucesso.


VI - O Assessor.
           Ele nunca foi afeito aos estudos. Odiava decorar fórmulas e entender raciocínios mais elaborados. Ao final do nível médio só tinha uma certeza: se fosse para fazer faculdade, seria da área de humanas porque "não tem matemática".
          Começou a fazer o curso de Administração de Empresas em uma faculdade particular. Não gostou, pois achou complicado entender a contabilidade básica e seus números. Desistiu no segundo ano e voltou a fazer um curso preparatório, às custas do pai, que insistia que ele deveria tentar o Direito "para fazer concurso público".
Ouvindo o conselho paterno, ele tentou algumas vezes o vestibular, sem êxito. Até que surgiu uma nova faculdade privada na cidade oferecendo o cobiçado bacharelado em ciências jurídicas. É certo que não havia o reconhecimento do curso pelo Ministério da Educação, mas, segundo a secretária que o atendeu, "era só uma questão de tempo". Assim ele ingressou na primeira turma daquela insipiente academia.
           Formou-se Bacharel já com seus trinta e poucos anos, até sem muito empenho. Devidamente graduado, o pai lhe conseguiu um cargo comissionado no gabinete de um deputado amigo de clube. Cargo pequeno, com salário baixo, pois boa parte tinha que ser devolvida ao chefe de gabinete, mas as poucas exigências lhe foram mantendo no serviço público do Poder Legislativo ano após ano.
           Até que aconteceu de o deputado enfrentar sérios problemas com a justiça eleitoral e ele, o bacharel, viu seu emprego sob risco. Contratempos com a justiça estadual e com o Tribunal de Contas não tiravam o sono do deputado, mas a justiça eleitoral o deixava freneticamente alvoroçado. Após meses de tensão e despesas consideráveis, o impasse foi resolvido. Passada a tormenta, o fato de quase ter perdido o emprego deixou um alerta importante: era preciso se precaver contra esse tipo de embaraço. Resolveu que deveria "se mexer" para garantir sua permanência no meio político, ainda que seu patrocinador caísse em desgraça.
           Matriculou-se em uma pós-graduação em direito eleitoral. Valeu muito a pena. Ao fim do curso, já era consultado por colegas de seu patrão sobre minúcias do processo eleitoral. Concluiu a especialização quase ao mesmo tempo em que seu diploma de graduação obteve registro oficial (por força de decisão judicial). Ele agora era especialista e, por conta de êxitos pontuais e da desenvoltura nas respostas às consultas, já era reconhecido como "o homem do deputado" para assuntos eleitorais. Aprendeu, com sorte e astúcia, a explorar falhas no sistema processual e a valorizar seus serviços. Assim fez fama e angariou respeito nos arraiais jurídico/políticos estaduais.
           Quando abriu um escritório de advocacia em sociedade com um filho do vice-governador, o sucesso veio a jato. Clientes de todo o Estado surgiam como que por mágica. Mas a banca era pouco para ele. Não demorou para que o deputado patrocinasse sua nomeação para uma Secretaria de Estado a que o partido tinha direito.
           No primeiro escalão do Poder Executivo, ele criou laços de confiança com o governador. Dali mais um punhado de anos, foi indicado a um cargo vitalício num Tribunal estadual.
           Atualmente ele conta com seus cinquenta e poucos anos de idade e tem uma assessoria composta de oito bacharéis concursados, cinco auxiliares de formação superior, duas secretárias e quatro estagiários, além de mais quinze cargos em comissão disponíveis.
           Ele é um dos pilares do nosso sistema jurídico e, conforme os ventos levem o seu amigo ex-governador para Brasília, ele será um forte candidato ao Pretório Excelso.

"Honesta fama est alterum patrimonium" (**).


** "Uma reputação honrada é um segundo patrimônio"




[F.R.Luz]