O Grande Escritório
Ele despertou quando sentiu a força da claridade atravessando suas pálpebras. Uma luz branca, sólida, opaca e poderosa a ponto de fazê-lo levar a palma da mão direita para frente do rosto. Vagarosamente abriu os olhos e suas pupilas foram pouco a pouco se ajustando à luz enquanto ele tentava, sem êxito, lembrar quem era, onde estava e por que esteve inconsciente.
Recordava vagamente um tipo de choque que o fez mergulhar no silêncio e na escuridão por tempo indefinido. Quando, finalmente, conseguiu enxergar onde estava, viu-se sentado numa cadeira giratória de madeira desbotada, que rangia a cada mínimo movimento. Em sua frente, uma escrivaninha em que repousavam uma calculadora manual de cor azul, grossos livros de capa verde e pilhas de formulários empoeirados, tudo iluminado por uma insuficiente lâmpada amarela pendente do teto. Seus cotovelos estavam postados sobre o tampo escuro, com as mãos entrelaçadas lhe apoiando o queixo, numa posição de quem cochilava.
Girou a cabeça e viu que por todos os lados, a perder de vista, havia centenas, talvez milhares de escrivaninhas iguais à sua, e cada uma com uma pessoa sentada com o rosto afundado numa pilha de papéis. Ele era o único que não estava encurvado. Apesar da multidão, o escritório era dominado por um relativo silêncio.
Perturbado pela visão, recostou-se na cadeira e fechou novamente os olhos, esperando que isso o despertasse de um sonho ruim. Lhe vieram à mente estranhas imagens de rostos e lembranças de nomes, até que foi despertado pelo toque incômodo de um dedo em seu ombro. Virou-se e viu um homem obeso, de rosto comum, olhos cinzentos e sem brilho, vestido com uma calça preta puída e larga, fazendo conjunto com uma camisa branca de tecido barato, uma gravata fosca mal colocada e sapatos sujos de pó.
O estranho personagem era o único em pé, e o encarando perguntou:
-Como foi?
Ainda fitando o rosto arredondado do interlocutor, ele respondeu sem hesitar:
- Quero voltar.
O homem obeso apontou para a pilha de papéis sobre a mesa e deu-lhe as costas. Obedecendo ao comando gestual, ele voltou a atenção para os formulários e num ato condicionado, porém consciente, passou a carimbá-los, depois a classificá-los por códigos, somar os valores, anotar tudo num livro-registro e, por último, arquivar os papéis em uma grossa pasta preta.
Após finalizar um grande lote de documentos, só então ele endireitou a coluna e levantou a cabeça, resultando em uma pesada tontura que o fez fechar os olhos novamente. Voltaram à sua memória os mesmos rostos de há poucos instantes, mas desta feita ele os reconheceu como sua família: sua esposa e três filhos, duas meninas entre 5 e 12 anos, e um rapaz de 19. Uma cena do quotidiano caseiro também se descortinou em seu pensamento: o sol da manhã o acordava num quarto iluminado de cuja janela se avistava um lago azul e, ao fundo, uma cadeia de montanhas verdes de contornos arredondados. Era domingo. Ainda na sua visão, ele se levantava da cama, descia as escadas e via o retrato de seus filhos. Lembrou dos nomes de cada um. Caminhava em direção ao quintal e um golden retriever, ao vê-lo, abanava a cauda e pulava sobre ele, que correspondia passando a mão na cabeça do animal. Da porta aberta viu sua esposa cuidando do jardim. Ela o via,sorria e acenava.
Um forte rangido da cadeira o despertou. Olhou em volta e viu que o Grande Escritório continuava a lhe circundar e que a pilha de papéis sobre sua escrivaninha havia aumentado. Lembrou do defeito em sua calculadora, que precisava de duas batidas na tecla 9 para "pegar" e, ato contínuo, começou a rotina padrão: carimbo, classificação, soma, anotação em livro-registro e arquivo...
Carimbo, classificação, soma, anotação em livro-registro e arquivo... Carimbo, classificação, soma, anotação em livro-registro e arquivo...
Apesar de seu incessante trabalho, quando ele achava estar terminando, descobria que mais formulários haviam sido postos em sua mesa. Até que deixou de crer que a tarefa teria fim.
De repente, exclamou em alta voz:
- Arquiteto!
- Eu era um arquiteto!
Ninguém lhe deu atenção.
Encabulado, curvou-se definitivamente sobre os papéis.
Não havia portas, janelas ou relógios no Grande Escritório.
[F.R.Luz}