O Velho General e Suas Medalhas

          Era noite de domingo e eu passava de carro na principal avenida de um movimentado bairro próximo ao centro da cidade. Dentre as poucas pessoas nas calçadas, meu olhar é atraído pela figura de um homem idoso, um pouco encurvado, que caminha solitário e lento, mas de modo altivo pelo canto do passeio. Olho com mais atenção e o reconheço. Mais adiante, no intervalo de um sinaleiro fechado, minha mente viaja no tempo e vai para a época em que eu era um oficial subalterno do Exército, e aquele senhor elegante era o Coronel comandante da unidade em que eu servia.
          Passados mais de 25 anos da última vez que o vi, lá estava ele, sem uniforme, insígnias, espada ou barrete. Duas prosaicas sacolas brancas de supermercado expunham o motivo de sua saída noturna. A luz verde acende e pelo resto do trajeto sou acompanhado por lembranças esparsas daquele personagem do passado: seu modo polido de tratar as pessoas, sua elegância gestual e seu inflexível cerimonialismo, que beirava a afetação. O Coronel tinha uma adoração quase obsessiva pelas formalidades, paramentos e protocolos da caserna. Ele era um entusiasta das liturgias e um guardador das tradições, promovendo cada ato a um ritual a ser perpetrado.
          Embora sua figura e personalidade pudessem remeter a uma insólita versão de Dom Quixote de La Mancha, o Coronel era um profissional dedicado e consciente da importância de sua autoridade. Quando na ativa, aquele carioca das Laranjeiras e torcedor do Fluminense parecia mesmo saído de um livro sobre a cavalaria medieval. Sua postura aristocrática combinaria com quaisquer títulos que – eventualmente – ostentasse antes do prenome, desde que remetessem à tradição, nobreza e autoridade. “Comendador", “Duque” ou mesmo “Monsenhor” lhe cairiam muito bem. Acho que o Alto Comando de Brasília, em algum momento, também percebeu isso e legitimou sua fidalguia, promovendo-o a General (seria imperdoável negar-lhe o título).
          Em outro dia, quase no mesmo local, novamente o vejo de longe. E assim por mais algumas vezes. Ele sempre de paletó em tons de bege ou marrom, mal combinando com calças de sarja e sapatos brilhosos.
          Uma vez, passei a pé ao seu lado, mas ele não me viu; se me visse, não me reconheceria. Notei que a lapela de seu paletó era enfeitada com pequenas medalhas ou “pins”, cuidadosamente colocadas. Embora de relance, identifiquei alguns símbolos que remetiam às forças armadas e ao patriotismo, compondo um mosaico das convicções do velho General. Interpretei que, mesmo sem tropas a comandar, ele ainda tinha seus particulares moinhos de vento.
          Em outra ocasião, tive o impulso de abordá-lo, mas desisti a tempo. Levianamente avaliei que o General aposentado ainda era aquele Coronel enfatuado de décadas passadas (o painel de pins na lapela era um sinal), e que um encontro com ele seria um diálogo formal entre habitantes de mundos diferentes, tentando rememorar fatos comezinhos do passado para estabelecer um vínculo apressado e suficiente para um encontro na rua.
          Minha rotina mudou e não mais o avistei por quase um ano, até que uma ocasião o vi na calçada oposta à que eu caminhava. Uma bengala lhe dava apoio e seus passos eram mais lentos e cuidadosos. Ao contrário da altivez de outrora, sua figura evidenciava uma visível fragilidade.
          Decido que vou cumprimentá-lo pelo menos. Reluto, mas atravesso a rua e o alcanço.
          – Bom dia, General; o Sr. lembra de mim?



[F.R.Luz]